Quando Teseu Saiu De Férias: Tia Nastácia Versus O Minotauro

Quando Teseu Saiu De Férias: Tia Nastácia Versus O Minotauro

Daniella Amaral Tavares
“O trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas”. (LOBATO, 1965, p. 217).

No final de O Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato (1939), tudo parecia correr bem com a fabulosa festa de casamento de Branca de Neve com o Príncipe Codadade nas terras de D. Benta. E o banquete, então, um assombro! Comandado por Tia Nastácia, que tinha ao seu dispor mais de cem ajudantes para assar mil e trinta e sete faisões, (LOBATO, 1965a, p. 174-175), era digno das festas mais luxuosas das Mil e Uma Noites.!

Mas o casamento não aconteceu conforme o esperado, pois foi interrompido pelo ataque avassalador de monstros míticos, que não foram convidados, e por isso decidiram arruinar a festa. Entre eles estava o Minotauro, a criatura do labirinto de Creta, acompanhado de um bando que incluía os Centauros, Cérbero, a Hidra de Lerna (que havia dado uma surra em D. Quixote) e a Quimera (LOBATO, 1965a, p. 181). !

Quando este tropel caótico invadiu a cozinha de mármore, Nastácia foi levada, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro (LOBATO, 1965a, p. 182). E assim, em meio à aflição geral, Pedrinho decide organizar uma expedição para salvar a quituteira, sendo recebido com alegria pela Emília: “Bis-bravo! - berrou batendo palmas - Isso é que é falar! Avante, avante! Toca a salvar tia Nastácia!” (LOBATO, 1965a, p. 189). Após este desfecho, somos levados ao livro O Minotauro (1939), que começa exatamente com os preparativos para uma viagem à Grécia moderna, no navio “Beija-Flor das Ondas” e de lá, graças a um mergulho na imaginação, aporta na Grécia do tempo de Péricles. !

No entanto, não era neste mundo onde Nastácia devia ser buscada, mas sim na “Grécia Heroica”, o tempo dos grandes heróis, como Hércules e Teseu, e para lá partem Pedrinho, Emília e Visconde, enquanto Dona Benta e Narizinho permanecem na Atenas de Péricles. (LOBATO, 1965b, p. 85). !

Mas em qual lugar e nas mãos de qual monstro estava a cozinheira? Para a mordaz boneca de pano, ela teria sido devorada pelo monstro de Creta: “Para mim o Minotauro a

devorou – disse Emília. – As cozinheiras devem ter o corpo bem temperado, de tanto que lidam com sal, alho, vinagre, cebolas. Eu, se fosse antropófaga, só comia cozinheiras. Narizinho teve vontade de jogá-la aos tubarões.” (LOBATO, 1965b, p. 11). !

Apesar do equívoco sobre a referida morte, Emília estava em parte certa: o Minotauro havia levado a personagem para o labirinto e lá ele engordava, feliz, às custas dos famosos bolinhos, esquecido da sua antropofagia1. O paradeiro é confirmado numa consulta ao Oráculo de Delfos, que revela, através da sacerdotisa que: "O trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas.” (LOBATO, 1965b, p. 217). Essa fala misteriosa é imediatamente interpretada por Emília, para quem o "trigo" significaria Tia Nastácia, pois ela,

[...] como cozinheira, lida muito com trigo, farinha de trigo, massa de trigo, pastéis, bolinhos, etc. E com as coisas gostosas que ela fez com a farinha de trigo "venceu", isto é, amansou a "ferocidade do monstro de guampas" que não pode ser outro senão o Minotauro. De todos os monstros que invadiram o palácio do Príncipe Codadade só havia um de guampas, ou chifres: o Minotauro. (LOBATO, 1965e, p. 217).

De fato, a boneca está certa e quando o grupo entra no labirinto de Creta, guiado pelos carretéis de linha de Emília, encontram o Minotauro sentado em seu trono, mastigando uma montanha de bolinhos, e contando com uma aparência nada assustadora:

[...] o monstro estava gordíssimo, quase obeso, com três papadas caídas; o seu corpanzil afundava dentro do trono. Que teria acontecido? (LOBATO, 1965b, p. 221).

Assim, este híbrido de homem e touro, antes o terror da ilha de Creta, foi transformado num ser apático (e vegetariano!) graças à Tia Nastácia, uma personagem normalmente representada como frágil e pouco afeita a aventuras, que enfrenta o monstro com as armas que domina: suas habilidades culinárias, as mesmas que encantaram São Jorge e D. Quixote em outros livros. !

Mas se ela dominou o monstro, onde estava Teseu, o herói que executa esta tarefa no mito? É interessante apontar que a versão lobatiana para o mito do Minotauro coloca em evidência apenas um personagem da narrativa tradicional: o próprio Minotauro, cuja prisão não abriga mais um monstro devorador de carne humana, mas um glutão pacato, vencido pelos bolinhos. Aqui, Teseu e Minos, citados brevemente (LOBATO, 1965b, p.106), não participam nos acontecimentos vividos pelos “picapaus”2 em Creta. Os jovens atenienses, que seriam ali devorados, também estão ausentes, assim como os personagens Dédalo, Dioniso e Ariadne, a princesa aqui substituída pela boneca de pano e seus carretéis de linha. !

Esta escolha é condizente com uma questão presente nos textos infantojuvenis lobatianos – a vitória da inteligência sobre a brutalidade. Em Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), este semideus pondera sobre a questão: “Sim, refletia consigo o herói. Eles representam a Inteligência e eu só disponho da Força. Em muitos casos a Força nada vale e a Inteligência é tudo [...]” (LOBATO, 1965c, p. 152). !

Já Nastácia, de modo diverso a outro herói, Teseu, não entrou no labirinto confiante em sua força e estava apavorada com a criatura que "De vez em quando punha pra fora uma língua deste tamanho e lambia os beiços.”, mas poupou a vida dela, porque "[...] estava com a barriga cheia [...]" (LOBATO, 1965b, p. 226). Ao contrário de Hércules e Teseu, a personagem descobriria que seu talento como quituteira também podia mudar o rumo dos acontecimentos. Assim, na cozinha do monstro, certa de seu fim e saudosa dos “picapaus”, ela teve a ideia de fazer bolinhos pela última vez e tantos fez que encheu uma peneira. Foi a sua salvação e vitória sobre o flagelo da juventude de Atenas! !

No no dia seguinte, o Minotauro, faminto, se aproximou dela e tendo visto a peneira cheia de bolinhos, provou um, outro, e mais tantos que engordou a ponto de não mais caminhar até a cozinha (LOBATO, 1965b, p. 227). Não era, portanto, necessário matar o monstro para derrotá-lo, mas ele podia ser “domado" por conta da sua paixão pelos quitutes - o que é um contraponto ao mito alinhado com as convicções do autor. Sem a violência da narrativa tradicional, o monstro de Creta “Acabou completamente manso. Esqueceu até a mania de comer gente.” (LOBATO, 1965b, p. 227).!

As substituições do autor, carregadas de humor sutil, nos conduzem a outra reflexão – o uso da paródia como meio de diálogo com o mito, recurso que simultaneamente alude à versão clássica e se desvia dela. Se de um lado temos uma criatura que devora carne humana crua, do outro encontramos um “homem-touro” mais humano, que dispõe de uma cozinha equipada com fogão, frigideiras e os ingredientes necessários para o preparo dos famosos bolinhos (LOBATO, 1965b, p. 222). Além disso, a “rebeldia” em relação ao texto clássico (SANT’ANNA, 2002, p. 32) aparece também no episódio do Oráculo de Delfos – em Plutarco, Teseu consulta o Oráculo antes de partir para Creta: “Pelo que se conta, o deus de Delfos ordenou-lhe por intermédio de um oráculo que tomasse Afrodite como guia e companheira de viagem”. (PLUTARCO, 1991, p. 31). Já em O Minotauro, como vimos, Lobato não apenas troca o conselho do Oráculo sobre a Afrodite (a deusa do amor) pela indicação do destino de Tia Nastácia, mas também muda a vitória de Teseu sobre o Minotauro para as mãos habilidosas da quituteira. !

Ao optar por colocar a astúcia no lugar da violência, substituindo uma morte sangrenta3 por uma derrota pacífica, O Minotauro também reconfigura o destino de uma personagem, aparentemente tão vulnerável nas mãos do monstro: como a Sherazade das Mil e Uma Noites, que todas as noites escapa da morte ao contar histórias para o rei, nossa heroína cria delícias todos os dias para obter sua salvação.


1 A versão mais conhecida do mito do Minotauro, presente em uma das narrativas de Plutarco (1991, p. 28-34), conta a história de um ser, meio homem meio touro, alimentado exclusivamente de carne humana e aprisionado desde o seu nascimento, por ordem do rei Minos, num labirinto construído pelo arquiteto Dédalo. A cada nove anos, o rei cretense exigia que a cidade de Atenas lhe enviasse, como tributo pela morte do príncipe Androgeu, sete rapazes e sete moças que seriam devorados pelo Minotauro. Na época do pagamento do terceiro tributo, Teseu, príncipe e herói ateniense, partiu para Creta, sob a orientação do Oráculo de Delfos, para derrotar o Minotauro. Guiado por um novelo dado por Ariadne, filha de Minos, ele consegue entrar no labirinto, matar o monstro e sair de lá para, em seguida, fugir com a princesa, que é abandonada na ilha de Naxos, onde é encontrada pelo deus Dioniso, com quem se casou.


2 “Picapaus” é uma maneira utilizada por Monteiro Lobato para se referir aos personagens que vivem no Sítio do Picapau Amarelo.


3 Num dado momento de Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), Emília critica os acessos de fúria do herói, a quem apelidou de “Lelé”: "Esse seu gênio exaltado não dá certo, Lelé. Por qualquer coisinha fica fora de si, enxerga tudo vermelho e lá vem a hecatombe [...] O bom sistema é o dos americanos nas fitas de cowboys. Quando chega a hora, o pega é tremendo, é dos que fazem a gente se torcer [...] Mas ninguém morre! Era o que você devia fazer aqui [...] Que direito tem uma criatura de tirar a vida de outra – não é mesmo, Visconde?” (LOBATO, 1965c, p. 166).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo e A reforma da natureza. São Paulo: Brasiliense, 1965a. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 12).

______. O Minotauro. São Paulo: Brasiliense, 1965b. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 13).

______. Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Brasiliense, 1965c. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2a série, Literatura infantil, v. 16).

PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Paumape, 1991. v.1.
SANT ́ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002.