Lobato apaixonado
Além de toda sua genialidade como escritor, do espírito combativo na defesa de suas ideias e do olhar futurista, Monteiro Lobato também foi um homem apaixonado, que encontrou o amor, conviveu com seus medos, incertezas e inseguranças, em uma época onde o romantismo era a base de qualquer relacionamento entre casais.
Sim, Lobato também amou e amou muito, por toda a sua vida!
Apesar dos relatos documentados em correspondências trocadas a partir do seu encontro com Purezinha, aquela que viria ser o grande amor de sua vida, esposa e mãe de seus filhos, não encontramos provas documentais sobre a vida íntima do escritor antes desse acontecimento, para saber por exemplo, se Lobato foi muito namorador durante a adolescência e juventude. O que encontramos foram algumas pinceladas que indicam que ele teve sim algumas paqueras passageiras em Taubaté e em Campos do Jordão. Mas nada que se compare ao relacionamento com a jovem Purezinha, esse sim com fartos relatos documentados nas cartas trocadas entre eles, no período de 1906 a 1908, cuidadosamente colecionadas por ela.
Eles se conheceram por acaso, na casa do advogado e professor Antonio Quirino Souza, ou Dr. Quirino, avô de Purezinha, onde Lobato ia habitualmente para jogar xadrez. Dr. Quirino, inclusive, havia sido professor do escritor no Colégio São João Evangelista, naquela cidade, em 1883, quando Lobato tinha 11 anos de idade.
Purezinha, modo carinhoso como era tratada por familiares, amigos e ela própria costumava assinar, na verdade se chamava Maria da Pureza Gouvea Natividade e era prima distante de Lobato. O parentesco distante entre eles, está confirmado no caderno de anotações de Purezinha, em uma genealogia da família registrada por ela. Os dois têm tataravôs em comum: o Sargento Mór Manuel de Moura Fialho e Anna Marcondes de Oliveira, casados em 1827.
Na época em que se conheceram ela era professora no Colégio de Miss Stafford, na cidade de São Paulo e costumava passar as férias na casa do avô, em Taubaté. Ela era uma mulher muito bonita de acordo com os critérios de beleza da época, “branca como pétala de magnólia”, e que “costumava ser cortejada pelos rapazes da cidade”, conforme descreveu o próprio escritor na correspondência com seu amigo Godofredo Rangel, de março de 1906. A partir desse encontro, na casa do Dr. Quirino, Lobato passou a cortejá-la assiduamente. Inspirado por essa paixão arrebatadora, escreveu versos românticos, alguns dos quais publicados no jornal O Minarete. Entretanto, haviam algumas diferenças entre o jovem casal, como o fato de Monteiro Lobato ser neto do Visconde de Tremembé, um fazendeiro aristocrata, proprietário de diversas fazendas, e a família de Purezinha ser mais liberal e ter entre seus membros um dos principais abolicionistas do país, Antonio Bento, seu tio. A princípio, o próprio avô do escritor foi contra esse relacionamento, porque a família de Purezinha era vista como progressista em suas ideias, enquanto a sua, era mais conservadora. Apesar das diferenças e mesmo contra a vontade do Visconde, Lobato e Purezinha continuaram a se relacionar, até que no dia 12 de março de 1906, ele a pede em noivado e recebe o sim três dias depois.
Como Purezinha mantinha o trabalho de professora na capital paulista, antes do casamento, eles tiveram que se relacionar através de cartas e essa correspondência está reunida no livro "Cartas de Amor", publicado em 1969, que reúne as cartas escritas à noiva entre 1906 a 1908. Lobato estava perdidamente apaixonado. E esse Lobato apaixonado era inseguro, reclamava de tudo! Reclamava por ela não lhe escrever diariamente, por escrever cartas curtas, se queixava por ela não ser efusiva em expressar seu sentimento de amor nas cartas e por aí vai. Esse comportamento apenas retrata uma época marcada pelo romantismo. Em uma dessas cartas, escrita dias após o noivado, o escritor reclama da demora da noiva em responder suas cartas:
“Esperei hoje a resposta da minha de sábado, mas o carteiro chegou de mãos vazias, enchendo-me de tristeza. Vi que de tua parte nenhuma pressa existe em proporcionar-me momentos felizes que serão os em que te ler. Paciência! Esperemo-la para amanhã.” (Carta de 24 set. 1906)
No dia seguinte Lobato escreve uma outra carta, onde mais uma vez reclama da demora da noiva em responder, demonstrando sua irritação, insegurança e até mesmo imaturidade em lidar com a situação, típicas de um jovem perdidamente apaixonado:
“Ainda hoje o carteiro não me trouxe coisa nenhuma. É, pois, certo que não queres corresponder comigo. Paciência! Seja feita a tua vontade. Nunca mais incomodar-te-ei com minhas cartas. Está ficará sendo a última. [...]
P.S. Deseja a devolução dos cartões que possuo em meu poder?”
Impaciente com a demora nas respostas às suas cartas, nesse mesmo dia o escritor também envia um cartão-postal escrito em código, endereçado a Purezinha e à sua irmã Noêmia, perguntando se alguém estaria zangado com ele.
Infelizmente não foi localizada a carta onde a noiva responde ao impaciente noivo, no dia 28 de setembro, conforme menciona este trecho de uma outra carta escrita por Lobato em 30 de setembro de 1906:
“Meu amorzinho.
Encheu-me de remorso a tua de 28, mas um consolo resta e é que se te causei alguma tristeza, foi-lhe causa o muito, o grande amor que te tenho. Não pude suportar a ideia de que demorasses tanto em responder à minha primeira carta de noivo. // Entrei a arquitetar mil suposições e, cheio de dor e tristeza, deixei escapar palavras que te magoaram. Mas espero da bondade de teu coração que já nenhum ressentimento exista nele contra mim. Amar é perdoar, sempre e constantemente – se é que me amas, perdoado estou de há muito tempo. Se eu te tivesse amor menos intenso, é claro que aquela demora nenhuma dor me causaria; mas não sendo assim, é mais uma prova te dei do que vivo a afirmar.”
Nessa mesma correspondência, Lobato se desculpa com Purezinha, reconhecendo a sua insegurança no relacionamento, mas também reclama do “excesso de cerimônia” usado por ela ao escrever ao noivo:
“[...] Não tens nada dentro de ti, Purezinha? Não tem uma coisa a que chamam alma e donde saem as palavras, as ideias, os pensamentos e os assuntos? És tão parcimoniosa no escrever ... dizes com tanta cerimônia as coisas... Por que não me escreves atabalhoadamente, borrando, riscando o papel, sem ordem, sem estilo, sem correção, sem nada desses estorvos gramaticais? Só assim se pode bem exprimir um sentimento. […]”
Naquele ano de 1906, completamente apaixonado, Lobato pede a mão de Purezinha em casamento, o que só não se concretizou porque ambos ponderaram que naquele momento ele era apenas um Bacharel em Direito, sem um emprego que lhe desse condições de sustentar a própria família. A noiva, por outro lado, já era professora desde 1901, quando se formara na escola complementar. Ele então pede ajuda ao avô, que um ano depois consegue a nomeação de Lobato como promotor público na comarca de Areias, dando assim condições ao neto de se preparar para o casório.
Quase dois anos de noivado se passaram e apesar de todo romantismo estampado nas inúmeras cartas trocadas entre eles, criou-se um certo incômodo por parte da noiva em relação ao futuro daquele relacionamento. Sim, a insegurança não era apenas de Lobato, mas também da jovem noiva, conforme ele próprio relata em carta escrita ao pai de Purezinha, datada de 26 de janeiro de 1908. Ele e a noiva já tinham conversado sobre o assunto e ela tinha reclamado do sentimento de incerteza em relação ao compromisso entre eles, afinal agora ambos trabalhavam e não havia motivo para que o casamento não tivesse ainda acontecido. Percebendo essa insegurança, Lobato então decide apressar a data do casamento, que acaba acontecendo, enfim, no dia 28 de março de 1908, na cidade de São Paulo. Lobato tinha 26 anos, Purezinha 23.
Tinham dúvida se passariam a lua de mel em Taubaté, no Rio de Janeiro ou na cidade de Santos. Por fim, decidiram pelo litoral paulista, onde ficaram na praia do José Menino. Em uma carta para o velho amigo Godofredo Rangel, publicada no livro A Barca de Gleyre, Lobato narra a sua aventura e desventura nas areias da praia de Santos:
“…os dias anteriores ao casamento passei-os aqui em S.Paulo, atrapalhado com as mil coisas concernentes. Depois de casado fui luademelar à beira do oceano, em Santos, Zé Menino. Mas lá, um belo dia, às 3 da tarde, quando tomávamos banho e brincávamos nas ondas como dois peixes nupciais, eis que pisamos num molusco venenosíssimo. Senti aquela moleza. Logo depois sobreveio um queimor na pele da sola, e veio uma comichão continua e por fim rebentou a infecção – purulenta e dolorosa. E isso em nossos quatro pés – os dois meus e os dois de Purezinha.”
Nessa mesma carta, o escritor conta ao amigo que ao retornarem da lua de mel ele e Purezinha tiveram que ficar um mês de cama “com os pés em posição horizontal, incapazes de um passo, os dois a gemerem e maldizerem o mar com todos os seus moluscos”. Após o período de recuperação, o casal retorna à cidade de Areias, onde Lobato reassume o posto de promotor e passa a morar com a esposa em um sobrado próximo à Matriz Sant’Ana.
Lobato e Purezinha tiveram 4 filhos: Martha, Edgar, Guilherme e Ruth. Purezinha deixou de lecionar para se tornar uma mãe e esposa dedicada em cuidar da casa, da educação dos filhos e ajudar Lobato a concretizar seus sonhos.
Por conta da inquietude de Lobato, eles viviam se mudando. De Areias eles foram para a fazenda São José do Buquira, herdada após a morte do Visconde e 1911 e depois de vender a fazenda se mudaram para São Paulo em 1917. Ela tinha por hábito ler histórias para os filhos e foi justamente observando essas experiências de leitura, que Monteiro Lobato se motivou para escrever um mundo de livros para meninos e meninas.
Lobato sempre exaltava a presença de sua Purezinha como uma mulher inteligente, que lia seus textos, o ajudava em suas traduções e palpitava sobre o que ele escrevia, uma invejável companheira que cuidava do bem da família enquanto ele se dedicava em tocar seus projetos profissionais. Ele escreveu, por exemplo, que a opinião de Purezinha era a única na qual ele confiava. Durante sua vida, ela foi sua companheira integral, que “sofria” com a energia criatividade constante do escritor. Uma mulher forte, que sofreu com a morte dos filhos Guilherme e Edgard, mas precisou se manter firme como o pilar mestre da família constituída ao lado de Lobato.
A história de amor de Monteiro Lobato e Purezinha, foi sendo escrita aos poucos, ao longo dos quarenta anos de casamento (1908 – 1948). Ela foi sua companheira de todas as horas, para todos os lugares, sempre apoiando e participando de todos os projetos do escritor. História que chegou ao fim no dia 4 de julho de 1948, quando aos 66 anos, Lobato morreu enquanto dormia em decorrência de um espasmo cerebral.
Purezinha permaneceu no seu luto, cuidando do legado do escritor, até falecer, aos 73 anos de idade, vítima de câncer no cérebro, no dia 27 de abril de 1959. Ela foi enterrada ao lado do marido no Cemitério da Consolação em São Paulo.
O fim dessa história talvez não tenha a mesma magia e encantamento daquelas que Lobato escreveu ao longo de sua vida, mas certamente foi a que mais o desafiou e extraiu dele o seu melhor.
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REFERÊNCIAS:
#Livro: “Furacão na Butocúndia”
https://docplayer.com.br/12438922-Monteiro-lobato-vida-obra-2.html