Jeca Tatuzinho: o anti-herói que virou símbolo nacional de saúde
Criado como retrato do homem do campo, lá no início do século 20, o personagem Jeca Tatu se transformou em um símbolo nacional de campanhas sanitaristas e de mobilização em torno da melhoria nos investimentos em saúde naquela época. Além de projetar o escritor Monteiro Lobato nacionalmente, ao longo do tempo o personagem sofreu mutações, saltando de um simples artigo de jornal, para dois livros e posteriormente como protagonista do Almanaque Fontoura, a maior peça publicitária da história do Brasil, que em 1990, atingiu a impressionante marca de 100 milhões de exemplares distribuídos.
Mas quem é e como surgiu o Jeca que nasceu Tatu e depois virou Tatuzinho, para fazer história e ajudar a transformar a saúde no nosso país?
É importante ressaltar que este texto não é, e nem tem a menor pretensão de ser, um artigo científico, algo que deixamos a cargo das inúmeras pessoas que dedicam suas vidas a pesquisar a vida e resgatar a vida e a obra de Monteiro Lobato. Este artigo busca resumidamente, sem o devido aprofundamento que um artigo científico exige, destrinchar a figura desse icônico personagem, desde a sua gênese até seu sucesso se transformando numa referência nacional que ainda hoje desperta a curiosidade, principalmente dos profissionais em publicidade.
Queremos, assim como Lobato brilhantemente fazia, provocar você leitor, a mergulhar cada vez mais fundo no universo lobatiano, despertando a sua curiosidade para desvendar os muitos ‘porquês’, além de estimular, quem sabe, novos estudos em torno das tantas curiosidades que esse gênio ainda hoje insiste em alimentar em nossa mentes.
Para escreve-lo, nós nos baseamos em dois trabalhos de pesquisa: na tese de mestrado em história do professor Evandro Avelino Piccino, “A persistência de Jeca Tatuzinho – Igual a si e a seu contrário”, para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em 2018; e na tese de doutorado em História Social, da professora Carmem Lúcia de Azevedo, “Jeca Tatu, Macunaíma, a preguiça e a brasilidade”, para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2012. Além da orientação e revisão do designer e bibliófilo Magno Silveira.
De acordo com o que encontramos, o Jeca nasceu Tatu em 1914, como parte da argumentação de dois artigos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo: “Velha Praga” e “Urupês”. O primeiro, na verdade era uma carta escrita por Lobato para a seção de queixas e reclamações, mas que chamou a atenção dos editores do periódico, por seu conteúdo, que decidiram então publica-la como um artigo em destaque no jornal, no dia 12 de novembro daquele ano. O personagem foi a forma encontrada pelo escritor para expressar a sua revolta com a velha praga das queimadas provocadas pelos caboclos da Serra da Mantiqueira, local onde à época ele vivia a vida de fazendeiro, na propriedade herdada do avô, o Visconde de Tremembé.
Quarenta dias depois da publicação de Velha Praga, em 23 de dezembro, 1914, o mesmo jornal publicava "Urupês", um longo artigo de aproximadamente 3.400 palavras e organizado em duas partes. Na primeira, Monteiro Lobato coloca uma questão de fundo, da qual ele próprio se tornara um grande crítico: o “caboclismo”, uma representação idealizada do caboclo – e na segunda ele faz uma descrição detalhada do personagem Jeca Tatu, nome com o qual batizara o seu caboclo: “um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome da carne onde se resumem todas as características da espécie.”
Mas, na realidade, a idéia de concepção do personagem, a gestação do Jeca Tatu, propriamente dita, começou alguns anos antes, como demonstram algumas cartas escritas por Lobato ao amigo e colega de Cénaculo, Godofredo Rangel, com quem costumava se corresponder enquanto Lobato vivia sua experiência de fazendeiro. Numa carta, de fevereiro de 1912, Lobato comenta com o amigo, que andava pensando sobre uma teoria do caboclo como “o piolho da terra, o Porrigo decalvans das terras virgens”, e que essa sua teoria daria “um livro profundamente nacional”. Em abril daquele mesmo ano, o escritor confidencia a Rangel: “Vou ver se consigo escrever um conto, o Porrigo decalvans, em que considerarei o caboclo um piolho da terra, uma praga da terra”. Por fim, no dia 20 de outubro de 1914, numa nova correspondência, a última onde trata sobre o assunto com o amigo, antes de escrever a famosa carta para a seção de queixas e reclamações do jornal O Estado de S. Paulo, Lobato escreveu: “Contar a obra de pilhagem e depredação do caboclo. A caça nativa que ele destrói, as velhas árvores que ele derruba, as extensões de matas lindas que ele reduz a carvão. Havia uma gameleira colossal perto da choça, árvore centenária – uma pura catedral. Pois ele derrubou-a com ‘três dias de machado’ – atorou-a e dela extraiu... uma gamelinha de dois palmos de diâmetro para os semicúpios da mulher! [...] Como aproveitou a gameleira, assim aproveita a terra. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de milho”.
Com o título inspirado no urupê – um tipo de cogumelo parasitário que destrói a madeira – Monteiro Lobato publica, em agosto de 1918, Urupês, obra focada no personagem Jeca Tatu, que reúne uma coletânea de contos escritos pelo autor, além do artigo homônimo, escrito anteriormente para o jornal O Estado de S. Paulo, considerado a jóia do livro. Na segunda edição, o escritor incluiu o artigo jornalístico Velha Praga e assim o livro assume seu formato definitivo com 12 contos e 2 artigos, pela ordem: Velha Praga e Urupês.
Mas foi a partir das teses sobre saúde pública de Belisário Pena e Artur Neiva, que o próprio Monteiro Lobato reformulou o seu juízo sobre o Jeca, respondendo assim já na segunda edição de Urupês: “Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie”, admite então. “É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.”
Se o Jeca Tatu nasceu como uma espécie de ‘anti-herói’ nacional nos dois primeiros artigos para O Estado de S. Paulo, ele passa a se transformar, à medida que o escritor vai conhecendo de perto o árduo trabalho dos sanitaristas da época, através das campanhas e expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz, em um símbolo da luta por melhores condições de saúde no Brasil. Essa mutação pode ser percebida, a partir de 18 de março de 1918, quando Lobato passa a escrever no mesmo jornal, uma série de artigos sobre saúde pública e saneamento, que posteriormente foram reunidos no livro "Problema Vital", publicado no final daquele ano e onde afirma categórico: "O Jeca não é assim; está assim", deixando claro que o estado lastimável em que se encontrava o caipira era culpa do descaso das autoridades públicas. Antes descrito pelo autor como um parasita, um piolho da terra, o Jeca passou a vítima da falta de atenção e investimentos em saúde por parte do governo.
Em 1919, Lobato propõe ao farmacêutico Cândido Fontoura, fundador e sócio majoritário do Instituto Medicamenta Fontoura & Serpe, de quem era amigo, o lançamento de Jeca Tatuzinho, um folheto publicitário, para o medicamento vitamínico Biotônico Fontoura (ankilostomina). O diminutivo do título, para ‘Jeca Tatuzinho’, segundo seu criador, se justificaria pelo pequeno formato da peça publicitária, semelhante a de um almanaque de farmácia, e não ao personagem Jeca Tatu. A ideia entretanto só sairia do papel em 1926.
Em 1924, Monteiro Lobato lança por sua própria editora o livro Jeca Tatuzinho, com capa dura, ilustrações do alemão Kurt Wiese e dirigido ao público infantil. A obra narra a história de um médico que se hospeda na casa do Jeca e fica horrorizado com a condição da saúde do Jeca. O medico lhe dá instruções de como ir lá no mato e pegar a erva de Santa Maria e prepará-la para matar o amarelão. Alem disso o médico o orienta tomar um vermifugo forte e sempre usar sapatos, pois a infecção ocorre por andar descalço! Este livro foi reeditado apenas mais uma vez em 1930, pela Cia. Editora Nacional, mantendo a capa dura, mas em tamanho maior do que a primeira edição. O enredo não mudou mas as ilustrações de Kurt Wiese da edição anterior, ganharam um novo projeto gráfico ocupando mais espaço, com cores mais vivas e texto mais rebuscado, sem a divisão em pequenos capítulos. Essa segunda edição trouxe ainda uma nota do autor, explicando que foi o texto do livro quem gerou a idéia do folheto (e não o contrário).
A primeira edição do folheto publicitário Jeca Tatuzinho, patrocinado pelo laboratório Fontoura, foi finalmente publicada em 1926. Não há como precisar a data de produção e distribuição exata dessa primeira edição do Almanaque Fontoura porque nenhuma das primeiras edições, ilustradas por Kurt Wiese foi datada. Há indícios de que inicialmente o lançamento dessa que é considerada a maior peça publicitária de todos os tempos no Brasil, seria 1925, porém ele só aconteceu em 1926, através da distribuição dos primeiros exemplares nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
O Almanaque Fontoura continha a mesma história do livro Jeca Tatu mas agora com uma importante modificação: O médico passa a receitar o Ankilostomina Fontoura para curar o amarelão e o Biotônico Fontoura para fortalecer o Jeca. O folheto era impresso em papel jornal, o formato pequeno (formato 11x15 cm), em preto e branco, com propagandas do Biotônico e da Ankilostomina Fontoura em seu interior. O Almanaque Jeca Tatuzinho tinha como estrutura narrativa, um texto composto por cerca de 2.200 palavras, apoiado por ilustrações e uma didática bem acessível às crianças, público prioritário do folheto. Dividido em 18 pequenos capítulos, cada um deles aberto por uma ilustração sintetizando visualmente o conteúdo e ocupando perto de dois terços da página. Com um total de 40 páginas, incluindo capa e contracapas, as edições ilustradas até 1939 pelo alemão Kurt Wiese são formadas por uma história narrada em 36 páginas e as demais preenchidas por anúncios de produtos do Instituto como o Biotônico e a Ankilostomina Fontoura. A argumentação do folheto respeita a clássica construção publicitária em dois momentos: o antes e o depois, com a narrativa apresentando inicialmente a frágil situação sanitária e de saúde do Jeca Tatuzinho, para depois dramatizar a quase milagrosa eficácia dos produtos do patrocinador. A partir de 1940, até 1957, a ilustração do Almanaque passou a ser feita pelo paulistano Jurandyr Ubirajara Campos, genro de Monteiro Lobato e pai de Joyce Campos, que ilustrou a publicação.
Outra curiosidade, é que muitas pessoas na época não sabiam ler e a saída que Lobato encontrou para tornar o Jeca Tatuzinho acessível ao maior número possível, foi falar com os adultos como quem fala com crianças, não apenas com textos bem simples, mas sobretudo utilizando ilustrações concebidas para se comunicarem por si só. Assim o simples folhear das páginas, combinado com a observação das figuras, facilitava a compreensão básica, embora superficial, do enredo. Desse modo, o papel dos ilustradores era muito importante na comunicação do personagem. O Almanaque Jeca Tatuzinho,somente passou a ser datado a partir de 1941, já com o ilustrador Jurandyr Ubirajara Campos, quando a publicação também passou a ser feita em duas cores e já acumulando naquela época, mais de 10 milhões de exemplares. A marca dos 12 milhões de exemplares foi atingida na 15ª edição, em 1958, quando o Almanaque passou a ser totalmente colorido. Já em 1962, a capa é redesenhada em cima de um desenho de Jurandyr Ubirajara Campos, ganhando um aspecto mais comercial e batendo a casa dos 32 milhões de exemplares distribuídos. Em 1973, quando o Brasil tinha apenas 100 milhões de habitantes, o Almanaque Jeca Tatuzinho ultrapassa a impressionante marca de mais de 84 milhões de exemplares. O Almanaque também foi editado em outros idiomas, como o alemão e o japonês, nos anos de 1940 sendo até hoje a peça publicitária de maior sucesso no Brasil!
REFERÊNCIAS
https://monteirolobato.com/evandro-avelino-piccino%20-jeca-tatuzinho.pdf
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45254398
https://www.encontro2018.sp.anpuh.org/resources/anais/8/1525294469_ARQUIVO_eventoampuh.pdf