Negrinha; mais que um conto, uma reflexão antirracista
Mais de cem anos depois de seu lançamento, Negrinha se mantém como um conto muito atual pela sua temática que envolve as questões raciais que ainda se mantém bastante problemáticas em nosso país, uma nação que infelizmente persiste no chamado “mito da democracia racial”.
Em sua primeira edição, lançada em 1920, o livro, voltado para o publico adulto, era composto por seis contos: Negrinha, Fitas da vida, O drama da geada, O Bugio moqueado, O Jardineiro Timóteo e O colocador de pronomes. Destes apenas o conto Negrinha, que dá nome ao livro, não se passava no ambiente urbano e foi escrito por Lobato antes e depois da viagem aos Estados Unidos. Esse foi também o primeiro livro em que o escritor começa a se afastar do ambiente rural.
Escrito em terceira pessoa, Negrinha tem uma carga emocional muito forte, sendo considerado, pela crítica, um dos conto mais impactantes de Monteiro Lobato. Este conto retrata uma época marcada pelo autoritarismo e pelo preconceito racial, protagonizado pela personagem-título, filha de uma ex-escrava e sem nome próprio. Após a abolição, em 1888, Negrinha se tornou criada na casa de dona Inácia, uma senhora rica, antiga proprietária de escravos libertos pela lei Áurea, sem filhos e interessada apenas em promover a imagem de caridosa aos olhos da Igreja. Com a morte da mãe, Negrinha tem o seu destino colocado aos “cuidados” dessa senhora, que não abandonou a visão e os costumes do antigo regime escravocrata, tratando a menina como sua absoluta posse.
A narrativa lobatiana é carregada de críticas que revelam a situação das classes menos favorecidas de uma sociedade brasileira totalmente discriminatória. A insatisfação do escritor com essa situação é notada já a partir do título da obra, com a utilização do sufixo –inha, demonstrando o tratamento pejorativo dado à personagem principal no decorrer do conto, apresentada como “[…] uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados”. Essa descrição não revela apenas as características físicas da menina, mas também a sua condição social e o seu constante estado psicológico. Negrinha é vítima de um meio social injusto e preconceituoso, cujos padrões se valem da submissão dos mais fracos e da hipocrisia, representados por Dona Inácia, a dona da fazenda, caracterizada por seu status e suas falsas virtudes: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu […] Mas não admitia choro de criança”.
Dona Inácia, representando a maioria da elite branca brasileira, não se adequou à abolição da escravatura e Negrinha continuou escrava, guardando as marcas da hostilidade, sendo vítima de violência física e psicológica, não apenas de sua cuidadora, mas também sendo vítima dos outros moradores e empregados da casa. “Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão […] Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo – não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam […] O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo.”
Sem identidade própria, Negrinha é tratada como um objeto, um animal que precisa ser domesticado, proibida de andar pela casa, de brincar e até mesmo de falar. A princípio há por parte da menina a aceitação de sua situação miserável, o que lhe impede de ir contra a realidade em que vive, aceitando passivamente todas as crueldades do preconceito e da desigualdade social contra ela. Entretanto, o texto traz também uma reviravolta da personagem.
Até então a única criança da casa, duas sobrinhas de Dona Inácia, duas garotinhas que por sua descrição (louras, ricas e possuidoras de brinquedos caros), representam o mundo burguês vem visitar a piedosa Tia e Negrinha é tratada como mais um “brinquedo”.
O conflito consciente em relação a sua condição e ao mundo, leva a pobre órfã a dialogar com si mesma, se questionando e refletindo acerca de sua condição como ser humano, levando a menina a externar seus pensamentos: “Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo […] – É feita?… perguntou extasiada”. Nesse trecho, em que o autor coloca voz na boca de Negrinha pela primeira vez no conto, ela assume a consciência de toda criança e se sente gente: “Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga […] Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma”. Trecho maravilhoso de trazer lagrimas este onde Negrinha percebe que ela não é um objeto mas sim um ser humano, com alma!
Lobato revela toda a sua genialidade neste conto, ao denunciar de modo claro e objetivo, através do contexto literário, o tratamento dado aos negros na época da Nova República, anunciando ao leitor o surgimento de uma nova realidade pautada na fome e na miséria.
Mesmo sendo uma ficção, Negrinha mostra, pelo chamado ‘buraco de fechadura’, como ficou a situação da maioria dos negros no período pós-abolição. Apesar de libertos por um decreto, eles permaneceram presos aos grilhões sociais, sem oportunidades, sem educação, sem qualquer amparo governamental para poderem se tornar membros produtivos ou iniciarem uma vida digna, sendo vistos ainda como meros serviçais na mentalidade de brancos reacionários. Dona Inácia, era uma dessas pessoas que continuou com o mesmo tipo de pensamento escravocrata.
Em resumo, o conto escrito Lobato há mais de cem anos, traz uma denúncia escancarada contra as elites brancas e à própria igreja, conivente com os maus-tratos, demonstrando assim toda hipocrisia contida nos bastidores da sociedade patriarcal da época. O racismo e o preconceito, são colocados lado a lado com a farsa, o sarcasmo, a tragédia e a compaixão.
Definitivamente, através de Negrinha, Monteiro Lobato presentou o povo brasileiro com um conto reflexivo e absolutamente antirracista.
O LIVRO NEGRINHA
Para competir com o mercado, Monteiro Lobato lançou o livro Negrinha com capa simples e sem ilustração alguma, com a primeira edição sendo vendida ao preço de 2 mil e quinhentos réis, enquanto outros livros custavam, naquela época, quatro mil réis.
A segunda edição do livro foi lançada em 1922, ao preço de mil réis e incluiu os contos: Os negros e Barba-azul. Deveria ter incluído ainda o conto O despique, mas o mesmo foi retirado e acabou sendo republicado anos mais tarde, no livro “Na antevéspera”, de 1933.
Em 1923 aconteceu o lançamento da terceira edição e foram acrescentados novos contos: Uma história de Mil anos; O fisco; Os pequeninos; A facada imortal; Apolicitemia de dona Lindoca; Duas cavalgaduras; O bom marido; Marabá; Fatia da vida; A morte do camicego; Quero ajudar o Brasil; Sorte grande; Dona Expedita; e Herdeiro de si mesmo. A obra passou então a somar vinte e dois contos.
Todas as três edições do livro foram publicadas pela “Monteiro Lobato & Cia. Editores”, vendendo juntas 12 mil exemplares.
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REFERÊNCIAS:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Negrinha
https://docplayer.com.br/12438922-Monteiro-lobato-vida-obra-2.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Negrinha#cite_note-1
https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/30693/1/ISRAEL%20LACERDA%20DO%20NASCIMENTO.pdf