Saiba tudo sobre o lançamento do livro ‘O Casamento de Narizinho’, terceiro livro adaptado da obra de Monteiro Lobato

Saiba tudo sobre o lançamento do livro ‘O Casamento de Narizinho’, terceiro livro adaptado da obra de Monteiro Lobato

Bisneta de Monteiro Lobato, a historiadora Cleo Monteiro Lobato lançou este mês, o livro “O Casamento de Narizinho”, o terceiro da série de adaptações e traduções das histórias que a escritora está fazendo do clássico centenário “Reinações de Narizinho”, obra que apresentou os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo e suas aventuras ao grande público, dando origem a um dos maiores sucessos da literatura infantil brasileira.

Com um total de onze histórias, Cleo já adaptou as histórias “Narizinho Arrebitado” e “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Todos pela Underline Publishing, editora localizada em Miami e especializada em promover escritores brasileiros no exterior.

Para quem ainda não conhece, a terceira história “O Casamento de Narizinho”, como o próprio título já diz, conta a história da união da personagem com o príncipe das Águas Claras, que havia adoecido de amor por ela. A simplicidade das narrativas, com uma linguagem perfeita para a literatura infanto-juvenil, conduz a uma leitura fluida, criativa cheia de momentos surpreendentes, instigando a curiosidade e o prazer pela leitura.

“O Casamento de Narizinho” tem 59 páginas e 12 ilustrações feitas por Rafael Sam, responsável também por ilustrar os outros dois livros já lançados. Vivendo nos Estados Unidos, há 24 anos, ao lado do esposo e do filho, Cleo conversou com a gente para falar sobre esse importante trabalho de tradução e adaptação da obra de Lobato e sobre o livro que foi lançado este mês.

Blog LcVc: Como surgiu a ideia de revisar a obra de Monteiro Lobato e quando você começou de fato a executar esse processo?

Cleo ML: A ideia nunca foi de revisar propriamente dito, a ideia inicial era somente traduzir... Mas ao fazer diversas tentativas de tradução eu percebi que pra mim era necessário atualizar em Português primeiro para depois traduzir. Cada vez que eu tentava traduzir eu não conseguia passar na primeira página de Reinações de Narizinho onde tem frases como: “Tia Nastácia, negra de estimação”, “[…] pedras negras de limo que Lúcia chama de Tias Nastácia do rio”… Apesar de saber que o termo: ‘negra de estimação’, era o modo de dizer que a pessoa era estimada e querida da família e que a frase “Tias Nastácia do rio” significa que Lúcia se sentia aconchegada e segura ao lado do ribeirão, ficava muito difícil de traduzir. A constante menção da cor da Tia Nastácia era irritante. Tentei traduzir por pelo menos 5 anos, mas não conseguia um bom resultado.

Com todas essas tentativas de tradução o que aconteceu é que eu percebi a necessidade de adaptar, mudar certas partes dos livros. Nem todos da família concordavam com essa ideia, mas finalmente em 2019 a obra de Monteiro Lobato caiu em domínio público, isso me abriu perspectivas de poder fazer o que eu quisesse sem interferência de ninguém.

Para que eu pudesse levar Monteiro Lobato para os EUA, em português ou em inglês, eu esbarrava no problema da Tia Nastácia e o jeito que a personagem estava tão anacrônica. Não há espaço hoje em dia para uma personagem negra tão antiquada, a não ser que você esteja escrevendo sobre o período da escravidão.

Tenho que mencionar que há anos existe uma espécie de campanha anti-lobato com repetidas acusações de suposto racismo na sua obra. Na minha família essas acusações não foram levadas a sério, achavam que as acusações eram tão absurdas que não mereciam resposta e por fim nunca fizeram nem uma nota de repúdio. A minha percepção sempre foi diferente, especialmente pela minha experiência como imigrante brasileira nos EUA e sempre achei necessário enfrentar essas acusações, mas minha posição era minoritária.

No início de 2020 fui convidada a participar de um seminário virtual de Português como Língua de Herança, que foi quando conheci a Nereide Santa Rosa e ficamos amigas imediatamente. Isso foi logo no começo da pandemia… E foi ótimo, porque a Nereide já escreveu mais de 80 livros, inclusive uma biografia autorizada pelos meus pais de Lobato quando criança. Essa amizade cresceu e com a Nereide eu pude discutir as questões que me incomodavam na obra de Lobato. Iniciamos um longo processo de conversa e discussão de como adaptar para o século XXI.

Nessa época aconteceu um incidente catalisador para mim: a morte de George Floyd aqui nos EUA e a morte do menino Miguel Otávio, que caiu do apartamento onde sua mãe era empregada no Recife... Foi o meu momento de clareza! Nesse momento todos meus questionamentos se cristalizaram e decidi o que fazer… Percebi que para mim a questão da justiça e igualdade racial eram as mais importantes, então decidi exatamente o que adaptar nos livros do meu bisavô: a personagem Nastácia.

Blog LcVc: E como funciona esse processo de adaptação?

Cleo ML: Quando eu decidi qual era a questão mais importante que eu queria abordar, eu li analisando o texto e focando somente na personagem Nastácia. Essa redução do escopo da atualização facilitou muito o processo. Nereide e eu revisamos o texto juntas e vimos se existiam termos anacrônicos. Por exemplo: Retiramos as referências à cor dela, porque hoje em dia não precisamos enfatizar que a pessoa é de qualquer cor, não há mais ”a negra isso”, ”a boa negra aquilo”... Quando Lobato escreveu seus livros, ele estava tentando mudar a imagem existente dos ex-escravos, que eram considerados pouco mais do que animais ou objetos para uso dos seus senhores, e ele quis modificar essa imagem mostrando que eles também eram seres humanos de valor. Nastácia é descrita repetidas vezes como “boa”. Mas hoje em dia não é mais necessário enfatizar repetidamente a cor junto com a qualidade de bondade. Hoje precisamos de uma Nastácia em pé de igualdade social e econômica com a sua amiga Benta.

É importante ressaltar que eu atualizei Tia Nastácia em três coisas: ela não é mais uma ex-escrava e sim amiga de infância de Dona Benta; ela não é mais analfabeta, agora sabe ler; e agora ela não é mais empregada, nem trabalha para D.Benta. De resto usei um artifício Lobatiano que é não explicar muito… Ninguém sabe que fim levou os pais de Narizinho ou quem é o pai do Pedrinho, nem com quem D. Benta foi casada… Lobato não explica muito o passado dos seus personagens. O que importa é o universo mágico que a partir da primeira página se abre para o leitor. Essencialmente a Personagem Nastácia manteve-se igualzinha a personagem criada pelo meu bisavô: ela continua excelente cozinheira, continua amorosa e acolhedora, continua ajudando a criar Narizinho e continua tendo feito a Emília. Não mexi na essência da Tia Nastácia. Inclusive modifiquei o menos possível nas falas, retirando apenas palavras ou termos que hoje são considerados preconceituosos, mas antigamente eram normais. Somente modifiquei as falas de Nastácia, onde era necessário para refletirem as mudanças da atualização da personagem. Por exemplo: como ela não é mais uma ex-escrava, ela não chama mais Dona Benta de “Sinhá”. Como ela não é mais analfabeta ela não fala mais como tal. Esses momentos foram assinalados e coloquei um glossário no final com explicações e também definições das palavras em desuso.

Blog LcVc: Você fez alguma outra atualização em algum outro personagem? Como foi a atualização visual dos personagens do Sítio?

Cleo ML: Não, não modifiquei nem atualizei mais nada no texto e não mexi em nenhum outro personagem.

O processo de atualização visual foi o mais fácil e divertido. Se você olhar os ilustradores oficiais de Lobato da década de 30 e 40 e até os desenhos da Editora Globo, você percebe que Dona Benta teve uma evolução visual, ficou mais “moderna”, evoluiu com os tempos, Narizinho e Pedrinho também, Emília e até o Visconde mudam com o passar das décadas, todos exceto Tia Nastácia! Ela continua de chinelo e paninho na cabeça eternamente.

Um belo dia em 2019 encontrei uma ilustração do Rafael Sam no Instagram. Era uma ilustração da Cuca, Visconde, Emília e o Saci atravessando a rua na faixa de pedestres – a rua se chamava Lobato Road, numa referência à famosa rua que ilustrou a capa do disco Abbey Road, dos Beatles. Fiquei encantada com a qualidade do desenho, a originalidade, o humor e as múltiplas camadas de referências culturais presentes no desenho do Rafael.

Já estava no processo de adaptação do texto junto com Nereide e precisávamos de um ilustrador. Nereide me apresentou diversos outros, mas nenhum se aproximava da qualidade e da inteligência dos desenhos do Rafael, então fui atrás dele. Conversamos e acertamos nossa parceria. Foi uma aproximação delicada porque eu não sabia se ele gostava de Lobato, se tinha algo contra, mas deu tudo certo e o trabalho dele está incrível, cada vez melhor!

Blog LcVc: E como foi esse processo de trabalho entre você e o Rafael?

Cleo ML: Confesso que o nosso processo de trabalho foi um pouco tumultuado. Eu nunca tinha trabalhado com um ilustrador, mas sou artista também e eu tinha as imagens no meu coração. O difícil era transmitir verbalmente para o Rafael desenhar o que meu coração sentia, fazer as minha memórias afetivas tomar forma… Tive de passar muitas imagens tiradas do Google para Rafael poder entender como é a flora do Vale do Paraíba, porque Rafael é do Recife e não conhece as árvores e flores da região Sudeste. Como somos duas pessoas visuais, eu fui atrás de referências visuais, as mais diversas na internet. Tivemos muitas conversas e discussões. Para o cenário do Reino das Águas Claras, eu vi uma imagem na TV do meu dentista, fotografei e mandei para ele. Era uma imagem das florestas de algas daqui de Santa Bárbara. Uso muito também as referências dos ilustradores antigos de Lobato, para manter o espírito original dos personagens e também adoro fazer referência às capas antigas.

Às vezes o que o Rafael tinha em mente não era o que eu tinha no coração. Por exemplo: tentamos fazer Dona Benta uma avó de hoje. Fiz mil buscas no Google, mas as avós de hoje podem ser uma mulher de 40 ou 50 anos de jeans e cabelo curto, aliás o Rafael queria fazer a D. Benta baseada em mim! Mas eu sou muito mais Emília do que Benta! De qualquer maneira percebi que D. Benta tinha que continuar uma avó de visual tradicional, icônica porque ela é a avó ideal, que só existe no mundo imaginário, nos nossos sonhos.

Foi assim com todos os personagens, discutimos todos um a um. A Emília foi pura inspiração do Rafael. A única condição que eu impus, é que não podia ter nada a ver com a Emília da Globo. A nova Tia Nastácia eu deixei para o Rafael fazer porque, quem melhor que um ilustrador negro, com duas crianças lindas, para fazer uma Tia Nastácia do jeito que os filhos dele gostariam de ver? E saiu essa Tia Nastácia maravilhosa, empoderada, orgulhosa da sua descendência africana! Pedrinho nós deixamos quase igual, mas com toques contemporâneos como o tênis All Star. E por fim, Narizinho tinha que ser feminina mas ainda criança, absolutamente não sexualizada e morena cor de jambo, igual Lobato a descreve.

Blog LcVc: Como tem sido a aceitação dos pais em relação a esse seu trabalho, quanto a compreensão do conteúdo das histórias do Sítio e a transmissão aos novos pequenos leitores?

Cleo ML: Tenho notado que os pais dizem que a leitura do texto ficou mais fácil. Acho que isso se deve primeiro às ilustrações maravilhosas que ajudam na compreensão do texto e depois ao fato da adaptação dos termos anacrônicos já estar incorporada ao texto. Então os pais não tem de fazer a adaptação ao ler e também se quiserem tem um glossário no final, assim se o pai ou a mãe não souberem a palavra, é só olhar.

Blog LcVc: Em relação ao seu trabalho, tanto de adaptação, quanto de tradução de "Reinações de Narizinho” - como é esse processo levando-se em conta a questão cultural e a questão de manter a essência da obra?

Cleo ML: Me perguntam muito sobre “a essência” da obra... Como eu fui criada lendo Lobato, discutindo Lobato diariamente, respirando Lobato a todo minuto, jantando nos móveis do Visconde de Tremembé e tendo contato diário com a filha e a neta de Lobato, nunca tive dúvida de qual era a essência da obra Lobatiana. Isso me ajudou muito.

Na adaptação, apesar da atualização da personagem Nastácia, o texto manteve o sabor e as características do texto original sem grande alteração até agora. Mas na tradução para o Inglês foi muito mais desafiador... Por isso tenho demorado tanto tempo para fazer esse trabalho de tradução. Ao traduzir para o Inglês tive que fazer muitas escolhas. Por exemplo: quais nomes traduzir e quais nomes manter em português? Mantive Narizinho, pois é parte essencial da personagem e a tradução para o inglês tem conotação pejorativa. Mantive Emília, pois existe Emily que é muito parecido. Pedrinho eu troquei para Peter mas optei por não chamá-lo de Little Peter. Com relação a fruta jabuticaba, que não existe nos Estados Unidos, usei o recurso de colocar uma ilustração para mostrar o que era uma jabuticaba. Noutro momento tem um longo parágrafo em que Pedrinho fala sobre o mastro de São João, que saudades ele tem etc… Tive de encurtar um pouco e colocar uma explicação sobre festas juninas no rodapé. Num parágrafo onde Pedrinho menciona o Saci, tive de colocar uma nota de rodapé explicando sobre nosso Saci. Tive que achar frases idiomáticas em Inglês que fossem correspondentes às frases brasileiras usadas por Lobato. Tive que pesquisar as onomatopeias, pois barulhos são diferentes em cada língua e tive que inventar jogos de palavras que fossem engraçados em Inglês, pois Lobato faz muitos trocadilhos e inventa muitas palavras!

Deixa eu dar um exemplo: No início do capítulo “As Jabuticabas”, Emília e Narizinho estão conversando sobre como iriam ajudar o Pequeno Polegar a escapar da história onde ele está preso… Pequeno Polegar é Tom Thumb em Inglês. Vejam só Lobato escreve "Emília era teimosa como ela só. Ela nunca disse Doutor Caramujo. Era sempre Doutor Cara de Coruja. E nunca quis dizer Pequeno Polegar. Era sempre POLEGADA.” Em Inglês ficou: “ Emília mas stubborn to no end and back. She never said Doctor Snail. It was always Doctor Smelly Nails. And never Thumb. Always DUMB.

Vocês entenderam os trocadilhos com os nomes? Foi super instigante pensar em tudo isso.

Blog LcVc: Nós estamos num momento muito tecnológico, onde as nossas crianças estão muito conectadas na internet, na era dos jogos e das redes sociais. Você percebe um certo desinteresse pelos livros, principalmente por parte do público infantil? Como você avalia esse momento e como lida com essa questão?

Cleo ML: Já faz um tempo que estamos nesse ‘momento muito tecnológico’ como você diz e com a pandemia, absolutamente perdemos a guerra. Não há mais como combater a dominância total de celulares, aplicativos e mídia social na vida das crianças. O pior é que o nível de ensino caiu muito com as aulas virtuais e agora a situação é muito pior que há 2 anos atrás. O jeito é usar a tecnologia, abraçar a mídia social, se conectar através das redes sociais e falar sobre livros, sobre Lobato. Por exemplo, eu tenho o projeto ‘Lobato nas Escolas’, que com a pandemia deslanchou com várias palestras virtuais. Todas as escolas têm um jeito de oferecer minhas palestras para seus alunos. Após fazer a inscrição eu entro em contato com a escola, que é quem escolhe o tema que iremos abordar. A palestra tem que fazer parte de uma unidade temática. Eu faço a palestra em qualquer plataforma tipo Zoom, Google-meet ou até por Instagram. Após a palestra peço que o professores postem no Instagram o que acharam do encontro e se os alunos tiverem o aplicativo, peço que também postem no Instagram ou no Facebook sobre o que aprenderam.

 

Cleo Monteiro Lobato já lançou “Narizinho Arrebitado- Livro 1” e também “O Sítio do Pica Pau Amarelo - Livro 2”. Também já lançou “The Adventures of Narizinho” e “The Yellow Woodpecker Ranch” em Inglês, todos pela Underline Publishing e todos ilustrados por Rafael Sam.

Agora ela lançou “O Casamento de Narizinho - Livro 3”, no dia 19 de Abril, na abertura da Semana Monteiro Lobato no Museu Monteiro Lobato em Taubaté.

O novo livro tem 59 páginas e 12 ilustrações feitas por Rafael Sam.

O livro pode ser adquirido por leitores do mundo inteiro pela Amazon ou no Brasil através do site www.monteirolobato.com ou pelo site Umlivro.com.br.

Os leitores também podem conversar com a bisneta de Monteiro Lobato, através da sua página oficial no Instagram: @cleomonteirolobato.

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