As incríveis personagens femininas de Monteiro Lobato
Há uma linha tênue entre a fantasia e a realidade, da qual muitas crianças e adolescentes se valem para lidar com seus anseios e medos, até à fase adulta, quando terão a personalidade fortalecida e meios para enfrentar as dificuldades da vida.
Movimentos feministas, o avanço tecnológico a própria transformação postural da mulher e sua ocupação no mundo são elementos que podem ser alvo de reflexão e adequação desde a infância até a idade adulta.
Até o início do século XX, poucos escritores brasileiros davam espaço diferenciado à mulher na literatura infantil brasileira, onde elas eram sempre retratadas com base na imagem dos clássicos infantis europeus, em que as personagens apareciam descritas como submissas ao protagonismo machista da época, de personalidade frágil e com excessivo cuidado em relação à sua descrição física, com uma insistente exaltação aos traços de sua beleza.
É a partir da obra Reinações de Narizinho, que Monteiro Lobato rompe mais uma importante barreira, ao retirar a mulher da mera condição de figurante ou de no máximo coadjuvante das histórias infantis, para lança-la à condição de protagonista nas histórias passadas no Sítio no Pica-Pau Amarelo.
Na verdade, o Sítio se torna um matriarcado (regime social em que a autoridade é exercida pelas mulheres), que derruba o estereótipo criado em torno da figura feminina, colocando no centro de suas tramas, quatro personagens que refletem toda brasilidade, tanto nas suas características físicas quanto comportamentais: a matriarca da família, Dona Benta, e a sua neta Lúcia; a cozinheira de mão cheia, Tia Nastácia; e a boneca de pano Emília, passam a ser fundamentais no processo de naturalização da cultura nacional, tão defendida por Lobato ao longo de sua vida.
Com essa obra, o escritor expõe mais uma vez toda a sua genialidade irreverente e inquietude, através desse matriarcado que reúne mulheres de personalidades marcantes, com argumentos fortes para se expressarem e redefinirem os seus papeis sociais, numa atrevida ruptura com os velhos modelos literários.
É nesse contexto, que para celebrar o mês reservado às mulheres, nós fazemos um mergulho no universo feminino de Monteiro Lobato, para conhecer um pouco da personalidade de suas principais personagens femininas.
Mesmo Emília não pertencendo ao gênero humano, a boneca carrega fortes traços de uma personalidade feminina que ela própria confessa: estou começando a ser humana”.
Nesse mergulho encontramos todo o feminismo de Monteiro Lobato, que inegavelmente, através do matriarcado estabelecido em Reinações de Narizinho, se mostra um feminista convicto, muito antes do surgimento do movimento de valorização da mulher no Brasil!
O feminismo de Lobato ganha luz pela análise de duas mulheres, estudiosas e historiadoras da literatura infantil: Nelly Novaes Coelho e Vera Maria Tietzmann Silva. É através do olhar de ambas, que percebemos não apenas o alter ego do escritor escondido na essência comportamental da boneca Emília, por exemplo, mas também na defesa de um tipo de mulher e de um modelo familiar diferente do que existia no Brasil, na primeira metade do século XX, época em que Lobato viveu.
Lobato sempre foi considerado um homem a frente de seu tempo, um escritor singular que teve sempre em mente formar crianças sábias e críticas, através de histórias que abordavam temáticas atuais à sua época, numa linguagem clara e acessível aos pequeninos e assíduos leitores.
A seguir vamos conhecer um pouco da personalidade das quatro principais personagens desse matriarcado lobatiano, que até hoje segue influenciando diferentes gerações.
NARIZINHO
Lúcia, neta de Dona Benta, é a menina do nariz arrebitado, a personagem mais lírica de Lobato, que demonstra valores como gentileza e respeito em diversas passagens.
Se mostrando bem instruída em muitos aspectos, ela é dona de ações que resultam sempre de longas reflexões e apesar de sua fala sempre rebuscada, obedecendo muitas vezes as determinadas condutas que uma menina da época deveria seguir, ela não esconde a autonomia na fala e nos gestos que se contrapõem as regras sociais daquele tempo.
Narizinho caminha entre os dois meios, como é possível perceber na passagem do casamento da boneca Emília, onde ela demonstra se importar com a tradição do casamento, mas reforça a autonomia da noiva para tomar a decisão final, o que não era de costume naquele período.
EMÍLIA
A mais famosa boneca de pano do Brasil, que vive uma metamorfose para a vida humana, é lembrada sempre que o tema abordado é o feminismo, como uma personagem marcante e representativa.
Ela foge totalmente dos padrões e do estereótipo de boneca frágil e delicada. Falante como ninguém, a boneca de pano marcou a infância de diversas gerações, virando um ícone da literatura brasileira e não há qualquer exagero em afirmar que a personagem criada por Monteiro Lobato, é a própria personificação da força, astúcia e do pensamento crítico.
A partir da vivência de novas experiências e aventuras, Emília percebeu que suas velhas ideias já não serviam mais, pois se tornaram tão inúteis quanto um tostão furado” (LOBATO, a chave do tamanho).
A personagem carrega ainda um espírito de curiosidade, sempre em busca de informações e de novas hipóteses que, em suma, busca a construção de um mundo melhor.
Emília alia antagonismos que se complementam em sua ousadia e criticidade. Ela não tem medo de permitir que seu lado mágico, lúdico, poético e louco de brinquedo falante converse com a racionalidade e a sabedoria que adquiriu ao conquistar consciência. Ciência e magia são, para ela, o segredo das grandes descobertas.
TIA NASTÁCIA
A melhor amiga de Dona Benta, foi escrava quando jovem e depois de liberta se tornou parte da família, cuidando de Lúcia desde pequena. Criou a boneca de pano mais famosa do país, Emília e também o sábio Visconde de Sabugosa.
Além da sabedoria, ela tem o dom da bondade, até por oposição ao preconceito.
Mesmo responsável pelos afazeres da casa, não é menosprezada em momento algum da obra, ao contrário, é sempre tratada com muito respeito por todos.
Lobato ainda quebra um paradigma para época. Tia Nastácia mesmo sendo empregada e negra, dá opiniões sobre todos os assuntos, xinga as crianças, quando necessário e, além de tudo, é confidente de Dona Benta, o que era raro para a época.
Tia Nastácia é um belo exemplo da raça negra na literatura brasileira. Com jeito simples, muito habilidosa, costuma chamar Dona Benta de sinhá, assim como os negros chamavam seus donos antigamente. Mas no Sítio não havia dono, nem patrão, a relação entre as duas, era de amizade, trocas de receitas e confidências.
Tamanha importância teve Tia Nastácia que ganhou até um livro com seu nome; Histórias de Tia Nastácia”, que começa com a personagem explicando o que é folclore para as crianças e assim segue contando histórias da cultura brasileira e suas lendas.
Mulher forte, Tia Nastácia ganha muito espaço nas histórias e conquista o coração de muitos leitores que, até hoje, têm a doce lembrança dela. Um papel educativo e fundamental na obra, que ganhou espaço, cada vez mais com o desenrolar das histórias.
DONA BENTA
Em muitos aspectos a personagem se assemelha e revela uma projeção do próprio Lobato; não apenas pelo nome Benta, feminino de Bento, mas por uma série de coincidências de características, como o fato de terem um lado simples e outro erudito, serem donos de uma propriedade rural e amantes de livros, ambos abertos a todas as áreas do saber e, mais do que isso, que faziam o conhecimento circular partilhando suas descobertas e leituras.
Assim como Lobato, Dona Benta é capaz de enxergar o mundo pelo olhar da criança e no momento de contar histórias aos seus netos ela deixa aflorar a imaginação o faz-de-conta. Ela quebra certas atitudes convencionais da sociedade daquela época, como o fato de ser mulher no contexto em que as obras lobatianas foram publicadas e ser extremamente ativa, independente e forte em suas ações e no seu discurso.
Dona Benta é uma espécie de mulher coragem, uma vez que Monteiro Lobato lhe deu condições para isso, criando, em plena época em que mulheres e negros eram muito mais menosprezados do que hoje, uma personagem de garra, e de sabedoria para administrar, sozinha, seu sítio e ainda quebrar a regra de que lugar de mulher é no fogão”.
Por meio de seu discurso e de suas atitudes, a personagem representa a mulher culta, educada e, além disso, independente, tomando conta do sítio e resolvendo todas as situações-problema.
Se hoje em dia ainda encontramos resistência em admitir que uma mulher pode ser independente, imagine então na época em que Lobato inovou a literatura, colocando a figura da mulher em supremacia.
Dona Benta se afasta bastante do protótipo de dona de casa e em vez de a vermos costurando, cozinhando ou bordando, como era comum naquela época, sempre a encontramos escrevendo cartas, lendo jornais ou livros, ou então, escutando as últimas notícias do país e do exterior, se equiparando às mesmas condições dos homens daquele tempo.
Essa é uma síntese da personalidade que encontramos nas principais personagens femininas criadas por Monteiro Lobato.
No Sítio do imaginário lobatiano, encontramos facilmente em livros como Serões de Dona Benta”, Geografia de Dona Benta”, O Sítio do Picapau Amarelo”, só para citar alguns, histórias onde os personagens masculinos são minoria, e não tem tanto destaque, quanto as mulheres do Sítio, ressaltando o matriarcado que citamos, que tem ao centro Dona Benta, Narizinho, Emília e Tia Nastácia.
Com toda a feminilidade de suas naturezas, as personagens do imaginário lobatiano são a representatividade da mulher moderna que vislumbramos hoje; de personalidade forte, de opinião, cultas e independentes também financeiramente, como podemos notar em Dona Benta, que apesar de não ser casada, administra o Sítio cuidando do mesmo com muito afinco e carinho, sem deixar que falte nada.
Uma outra atitude feminista explicitada pelo autor, encontramos no livro O casamento da Emília”, onde Lobato traz uma temática um tanto comum: o casamento. Porém o comportamento da noiva, a boneca Emília, passa bem longe do considerado comum e de servir como exemplo para as noivas daquela época. Isso pelo fato da boneca de pano ser desbocada” e expressar livremente sua insatisfação em relação àquilo que lhe desagrada como, por exemplo, os versos recitados pelo personagem vidro azul e o comportamento de rabicó, seu noivo ao final do casório.
Esse comportamento audacioso raramente era encontrado nas mulheres de antigamente, porque como escolhidas” pelos homens para um casamento conveniente, não tinham voz ativa e precisavam enxergar apenas a qualidade de seus noivos, não devendo expressar abertamente sua insatisfação com eventuais defeitos do mesmo.
Ousadamente, Lobato não subestimou a capacidade da mulher, não a considerou como submissa ao homem, ao contrário, fez questão de mostrar aos homens e mulheres machistas de sua época que a mulher pode ser sim: independente, trabalhadora e culta, superando muitas vezes o próprio homem.
As figuras de Dona Benta, tia Nastácia, da boneca Emília e Narizinho deixam profundas marcas na saga do Sítio do Picapau Amarelo, elas atestam o lado feminista do seu criador.
Nestas quatro personagens femininas, Lobato externou uma maneira inovadora de representar a mulher na literatura infantil.
Um brinde à genialidade ousada do feminista Monteiro Lobato e à todas as mulheres do nosso Brasil!
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Referências Bibliográficas
https://anais.unicentro.br/seped/2010/pdf/resumo_182.pdf
https://diaonline.ig.com.br/2022/03/08/dia-da-mulher-personalidades-de-destaque-na-literatura-https://editorarealize.com.br/editora/anais/enebio/2021/CEGO_TRABALHO_EV139_MD1_SA24_ID550_0303
https://monteirolobato.com/wp-content/uploads/2021/12/2008LisandraPortelaSteffen.pdf
https://editorarealize.com.br/editora/anais/enlije/2016/TRABALHO_EV063_MD1_SA5_ID690_240720162009
http://nastrilhasdaliteratura.blogspot.com/2009/07/monteiro-lobato-um-escritor-feminista.html