O idolatrado racismo de Monteiro Lobato
Autor: Dra. Vanete Santana-Dezmann
Chegamos ao século XXI com vontade de renovar o mundo e quebrar as velhas estruturas. “Abaixo o preconceito” é o novo e bem-vindo lema. O que muitos que seguram esta bandeira parecem ignorar, porém, é que não se constrói um novo mundo do nada e que a cultura não se encontra fora de nós. Assim, alguns dos mesmos que se proclamam defensores dos historicamente oprimidos – mulheres e negros –, posicionando-se contra a misoginia e o racismo, ovacionam Martinho da Vila, cantando em coro “Ô nêga, vá trocar esse batom, porque assim não estás em bom tom. Combina com o esmalte da unha, mas esse vermelho encarnado esconde as virtudes que tens. Também está excessivo o perfume. Juro, não é só ciúme. Me orgulho de te verem bem. Não fala muito quem sabe falar. Não compra tudo quem sabe comprar. Não bebe muito quem sabe beber. Não come de tudo quem sabe comer. Mas ama muito quem tem só um amor. E tu és a minha única flor. Vai, nêga!”.
Em outras palavras: “então, negra, não é porque você é capaz de falar, comprar, beber e comer, que você vai fazer o que quer. Não vai sair de batom vermelho e perfume simplesmente porque você é minha propriedade e eu, acho alfa forte e seguro, não quero”. Paradoxal e contraditoriamente, muitos que continuam cultuando este e outros sambas dos anos 70, com suas letras misóginas e – será que não? – racistas, decidiram cancelar Monteiro Lobato a todo custo. Basta explicar que Lobato usou para se referir aos negros do início do século XX o jargão corrente à época (e os motivos por que o fez), e comprovar que, no conteúdo, eleva as personagens da etnia negra à mesma posição que ocupam as de etnia branca? Não, não basta!
Basta explicar que, se Lobato se dirigisse a um público leitor negro, usaria outros termos? Senão por não ser racista, ao menos por tino comercial? Não, não basta! Basta explicar que não havia público leitor negro no início do século XX e que isso não era consequência da literatura que então se praticava, mas, sim, das características sociais e econômicas da época? Não, não basta! Basta explicar que O Presidente Negro é um livro de ficção científica e que as
falas das personagens de um livro não reproduzem o pensamento do autor do livro, até porque há diferentes personagens, com diferentes pontos de vista, e que, se as falas das personagens reproduzissem o pensamento do autor, todo escritor seria esquizofrênico? Não, não basta!
Basta explicar que Lobato ficou “P da vida” quando editores nos EUA não compreenderam o livro O Presidente Negro e desabafou, em tom irônico e escrachado, sua marca registrada, que lá chegou tarde demais; que se tivesse chegado antes, quando o Ku Klux Klan assolava o país, seu livro teria sido publicado? Afinal, ele escreveu um livro contra o racismo que foi tomado como sendo racista. Então, se era para ser assim, que o livro tivesse sido apresentado aos verdadeiros racistas, que, pelo motivo errado, teriam-no publicado. Não, não basta!
Basta explicar que não se analisam pedaços descontextualizados de falas e textos, como se tem feito no caso de Lobato, pinçando a dedo trechos de suas cartas e obra com o exclusivo interesse de comprovar um veredito previamente proclamado, quando o certo é a análise preceder o veredito? Não, não basta! Basta explicar que Lobato foi reivindicado por comunistas, integralistas e eugenistas, embora não seja possível provar que ele tenha sido comunista ou integralista ou eugenista e que, como todo ser humano de carne e osso, como você e eu, Lobato, à medida que conhecia melhor as coisas – lendo sobre elas, frequentando reuniões sobre elas, conversando com quem as apresentava –, mudou de opinião sobre muitas coisas ao longo da vida? Não, não basta! E por que não basta?! Porque, na era do twitter, ninguém se dá ao trabalho de ler mais do que 280 caracteres. Porque, na era do politicamente correto, qualquer ocupante de algum “lugar de fala” pode falar e escrever o que quiser, pode até, simbolicamente, enforcar Lobato pendurado em uma árvore, como faziam os condenáveis membros do clã, enquanto dançam e cantam “Ô nêga, vá trocar esse batom!”. Pois é... a cultura não se encontra fora de nós... E é mais fácil ver um grão de pólen no olho alheio do que um cabresto bem posto.
Vanete Santana-Dezmann é professora, pesquisadora e tradutora. É responsável pelas Jornadas Monteiro Lobato USP-JGU, juntamente com John Milton. Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução (USP), com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução (UNICAMP), com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim, e mestrado na mesma área (UNICAMP). Graduou-se em Letras (UNICAMP).
O retrato falado do “racismo na obra infantil de Lobato” – Vanete Santana-Dezmann. https://vanetesantanadezmann.blogspot.com/2021/01/o-retrato-falado-do-racismo-na-obra.html
Emília, a cidadã-modelo soviética: Como a obra infantil de Monteiro Lobato foi traduzida na URSS. – Marina Darmaros e John Milton: https://www.researchgate.net/publication/334594154_Emilia_a_cidada-modelo_sovietica_Como_a_obra_infantil_de_Monteiro_Lobato_foi_traduzida_na_URSS
Beloved, Amistad e Negrinha... libelos contra o racismo – Vanete Santana-Dezmann: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/beloved-amistad-e-negrinha-
libelos-contra-o-racismo/