História reescrita

História reescrita

AUTOR: FELIPE MACHADO

DATA ORIGINAL: 24/03/2021

FONTE: REVISTA ISTOÉ

CRÉDITOS: REVISTA ISTOÉ

No Brasil e no exterior, clássicos da literatura e do cinema enfrentam um revisionismo cultural e são obrigados a se adaptarem ao contexto histórico atual, que não aceita comportamentos abusivos em temas como raça e gênero

Por mais atemporais que sejam as histórias contidas em suas páginas, livros são objetos imutáveis feitos de palavras impressas em papel. Como toda obra artística, nascem da criatividade de seres humanos e ganham vida a partir de contextos pessoais e sociais que não podem ser desprezados. Isso, porém, não exime a responsabilidade que um autor tem sobre a forma como se expressa: o mundo muda, mas as ideias permanecem. No início desse mês, um dos nomes mais renomados da literatura infantil nos EUA teve seis títulos retirados de circulação após uma junta de especialistas alegar que eles continham temática racista ou xenófoba. Theodor Seuss Geisel, mais conhecido como Dr. Seuss, escreveu mais de 60 obras e criou personagens populares como “Grinch” e “Lorax”. Sua família, detentora dos direitos autorais, apoiou a decisão e defendeu a tese de que elas “mostravam grupos minoritários de forma errada”. Apesar de polêmica, a medida foi bem vista pelo público: os outros livros do autor subiram para o topo nas listas dos mais vendidos.

O Brasil enfrenta dilema parecido desde 2010, quando um dos escritores mais populares do País passou a ter a obra questionada pelas mesmas razões. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, Monteiro Lobato encantou leitores com o universo do “Sítio do Picapau Amarelo”, turma que tinha entre seus personagens a ex-escrava e cozinheira Tia Nastácia. Além da forma humilhante como ela é retratada, Lobato é acusado de racismo por sua vida pessoal. Quem o acusa, porém, não leva em conta que as capas de seus livros foram feitas por Bendito Barros Barreto, o “Belmonte”. Escolher um artista negro para ilustrar suas edições era uma atitude avançada para os padrões da época.

A historiadora Cleo Monteiro Lobato, bisneta do escritor, publicou uma edição atualizada de “Reinações de Narizinho” sem os trechos racistas. Na nova versão, tia Nastácia é uma amiga de infância de Dona Benta. “A última revisão havia sido feita em 1947. A obra está parada no tempo, mas a sociedade evolui”, afirma Cleo, que mora nos EUA e participou das manifestações antirracistas. Para ela, não é possível apagar que houve escravidão no Brasil. “Meu pai era judeu, sua família morreu em campos de concentração. Nem por isso se pode apagar o holocausto”, compara. Cleo elogiou a decisão dos herdeiros do Dr. Seuss. “Deveríamos ter feito esse mesmo tipo de revisão juntos, teria mais peso. Mas minha família não é coesa.”

O escritor Jeferson Tenório, autor de “O Avesso da Pele”, não vê com bons olhos esse tipo de adaptação. Para ele, o correto seria manter o texto original com notas explicativas. “Quando ouço que Lobato era um ‘homem do seu tempo’, penso nos outros autores que estavam no mesmo contexto e não eram racistas, como Augusto dos Anjos, Manoel Bandeira e Graciliano Ramos”, diz. “Seria mais correto admitir que há um racismo estrutural e epistêmico entranhado na cultura brasileira. Ser antirracista não é varrer o problema para debaixo do tapete, mas colocá-lo no meio da sala.”

O revisionismo cultural não está restrito aos livros. O grande clássico “E o Vento Levou”, filme de 1939 sobre a guerra civil americana – que teve a escravidão como estopim do conflito –, foi retirado do canal HBO em 2020 após o assassinato de George Floyd. O vídeo voltou ao ar, mas com uma mensagem introdutória que explica o contexto da época da produção.

GÊNERO

O debate não contempla só a questão racial, mas também a de gênero. Críticas à objetificação feminina começaram pelo público infantil. Na animação “Space Jam”, lançada pela Looney Tunes em 1996, a coelhinha Lola Bunny aparecia com roupas justas e um visual sexy. Na nova versão, ela ganhou uma aparência mais discreta, sem decotes e com uniformes confortáveis . Quem não teve a mesma sorte foi Pepe Le Pew, o gambá com jeitão de conquistador: ele foi cancelado porque seu costume de beijar à força outras personagens era muito abusivo. Nos desenhos animados, basta apagar o problema. Na vida real, as soluções exigem medidas bem mais complexas.