COMPLEXO DE ‘PERSEGUIÇÃO’
AUTOR: MARCIA CAMARGOS
Depois que a obra de Monteiro Lobato caiu em domínio público, seus livros, alguns deles adaptados, passaram a sair em fornadas. Paralelamente, eclodiram debates acalorados e ataques persistentes, talvez até orquestrados, contra o suposto racismo do criador do Sítio do Picapau Amarelo. Não poucos aproveitaram para surfar na onda e aparecer na mídia. Alguns colunistas também resolveram dar a sua martelada nos pregos de um caixão onde parecem querer, a todo custo, encerrar o escritor, como fez Marilene Filinto no recente artigo de Ilustríssima (7/01).
Ora, a talentosa autora de “As Mulheres de Tijucopapo” afirma que não leu Lobato na infância, enquanto enumera uma série de livros ligados à história da sua terra natal, como se fossem anos luz mais importantes do que as aventuras da turma de Narizinho. Meio como se afirmasse, “olhem como tinha acesso a material de altíssimo nível, não perdi nada em não conhecer Emília ou Tia Nastácia”. Em seguida relata sua experiência com o autor, anos mais tarde, por meio de Jeca Tatu. Pegou antipatia na hora, sem se informar sobre o único personagem que a teria interessado. Porque, se o fizesse, descobriria, sem grandes esforços, que o próprio Lobato chegara às mesmas conclusões do que ela. Ou seja, ele admitiu que o pobre caipira paulista estava longe do indivíduo indolente e preguiçoso que julgou à primeira vista. Ao contrário, era marginalizado, “um excluído, injustiçado, solitário”, pra usar as palavras da articulista. Pois Lobato, que não tinha medo de se corrigir, ao ler as teses dos médicos Belisário Pena e Artur Neiva, reviu suas opiniões sobre o mundo rural, constatando que a apatia do caboclo advinha do subdesenvolvimento, da fome e da falta de infraestrutura básica.
“Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie”, admite então. “É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”.
Marilene Felinto pode não ter mencionado, mas ele foi além, engajando-se nas campanhas sanitaristas e escrevendo, em 1918, uma série de artigos, enfeixados depois em Problema Vital, denunciando a doença do homem da roça e o crime dos que parasitariamente gozavam, na cidade, o fruto da sua incansável labuta.
“A esta hora milhões de verdadeiros patriotas lá estão no eito, porejantes de suor, na faina da limpa e do plantio. Febrentos de maleita, exaustos pelo amarelão, espezinhados pelo ácaro político, lá estão cavando a terra como podem, desajudados de tudo, sem instrução, sem saúde, sem gozo da mais elementar justiça”.
O ápice do menosprezo pelo criador da nossa literatura infanto-juvenil e do mercado editorial brasileiro, porém, dá-se no momento em que a colunista confessa como a sua antipatia aumentou com a leitura do conto Negrinha. Diz que precisou esconder a vontade de chorar quando, na verdade, deveria ter compartilhado o genuíno sentimento de revolta que Lobato suscita em cada um de nós diante daqueles trechos de denúncia nua e crua. Por que não dividir o que sentia pela menina “de criação” com os colegas “branquelos”, filhos de imigrantes pobres, que aportaram em São Paulo em busca de melhores condições de vida? Compreensível que Negrinha represente a sua ancestralidade, mas o sofrimento dela desperta profunda indignação em qualquer ser humano minimamente consciente, qualquer que seja sua etnia, origem, raízes. Talvez ali Felinto não tenha entendido a louvável e necessária atitude de Lobato ao expor, em carne viva, o absurdo de crianças abusadas por uma elite escravocrata, aliada à hipocrisia da Igreja, que ele nunca cansou de criticar. Aquela desgraceira humilhante precisava, sim, ecoar nos corações e mentes dos alunos e professores, para que não se repetisse no futuro como farsa nem tragédia.
Convém lembrar que, no passado, o escritor foi perseguido por suas ideias libertárias, iconoclastas, ousadas. Amargurou meses de prisão no Estado Novo e teve textos de sua autoria queimados nos fornos da ditadura Vargas.
Agora, a julgar pelo ritmo da campanha difamatória em marcha, não tardará o dia em que assistiremos a uma nova fogueira da inquisição ardendo com livros infantis e adultos de Monteiro Lobato.
Escritora com pós-doutorado em História pela USP tem 32 livros publicados. Biógrafa de Monteiro Lobato, uma das curadoras das suas Obras Completas relançadas pela Ed. Globo em 2004, é co-autora de Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, prêmios Jabuti e Livro do Ano pela CBL em 1998.