“O PETRÓLEO É NOSSO”, AS DERRADEIRAS PALAVRAS DE MONTEIRO LOBATO
AUTOR: CARLOS RUSSO JR
DATA ORIGINAL: 22 DE NOVEMBRO DE 2014
FONTE: JORNAL OPÇÃO
CRÉDITOS: https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/o-petroleo-e-nosso-derradeiras-palavras-de-monteiro-lobato-21532/
No dia 2 de julho de 1948, Monteiro Lobato concedeu à rádio Record aquela que seria a última entrevista de sua vida, a qual encerrou com as palavras: “O Petróleo é Nosso”! Dois dias após, “O Repórter Esso”, na voz de Heron Domingues, anunciou a morte de um grande brasileiro, desses que surgem poucos a cada geração: “E agora uma notícia que entristece a todos: acaba de falecer o grande escritor e patriota Monteiro Lobato!”
Monteiro Lobato, nascido em Taubaté em 1882, falecia aos 66 anos de idade; o corpo foi velado na antiga Biblioteca Municipal de São Paulo e em seu cortejo fúnebre, que seguiu a pé até o Cemitério da Consolação, havia mais de dez mil pessoas a quais cantavam o Hino Nacional. Compreendiam que Monteiro Lobato representou a seu modo o ímpeto pioneiro, renovador, criador de tantas iniciativas fecundas e ousadas, aventuras pessoais ou coletivas, que formatariam o Brasil moderno.
Advogado sem vocação, seu primeiro emprego foi o de promotor público na cidade de Areias. Depois, teve sua experiência como fazendeiro, quando suas inovações agropecuárias demonstraram-se desastrosas; no entanto, “enquanto o fazendeiro se enterra, o escritor se levanta”, diz seu biógrafo Edgard Cavalheiro, porque os melhores “frutos da fazenda” foram os livretos “Jeca Tatu” (1919) e “Urupês” (1918).
Esses coincidiram com a greve geral de 1917/18, e com a onda de reivindicações operárias que se alastrou por todo o país até os anos 1920, e expressavam literariamente os novos anseios populares. No pequeno volume de “Jeca Tatu” havia uma joia rara se revelava no propósito do autor de que o conto infantil fosse “um instrumento claro de luta contra o atraso cultural de nosso país, contra a miséria e o conservantismo corrupto e corruptor”. “Urupês”, por seu lado, “era um brado de revolta que não se ouvia desde ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha”, no entender de Astrojildo Pereira.
Seguidor de Figueiredo Pimentel, o brilhante autor de “Contos da Carochinha“, Monteiro Lobato ficou popularmente conhecido pelo conjunto educativo de sua obra infanto-juvenil, constituindo aproximadamente a metade da sua produção literária.
O êxito dos primeiros contos impulsionou o homem empreendedor a investir com todas as suas forças no mercado editorial. Em uma época em que os livros brasileiros eram editados em Paris ou Lisboa, Monteiro Lobato tornou-se editor, passando a produzir livros no Brasil. Dentro de pouco tempo as edições da Monteiro Lobato e Cia. dominavam o mercado livreiro brasileiro. O voo, entretanto, fora alto demais. Sem nenhum apoio governamental, as grandes oficinas gráficas não suportaram a dificuldade de financiamento e a crise energética que se abatia sobre o Brasil. Lobato enfrentou dignamente a falência de sua Editora em cujos alicerces ele plantaria os da Companhia Editora Nacional.
É depois da primeira experiência com uma editora que ele deixa São Paulo e muda-se para o Rio de Janeiro, onde segue a carreira de escritor.
Em 1927, Lobato realiza um velho sonho: é nomeado adido comercial nos Estados Unidos. Os quatro anos que passará na América do Norte constituirão uma descoberta e um deslumbramento para o caipira de Taubaté: vê o gigantesco progresso americano e o compara com a nossa lentidão colonial. Ao voltar, trará planos grandiosos de salvação econômica para o Brasil. O primeiro deles é a Campanha do Ferro: é preciso “ferrar o Brasil”. A próxima, ainda mais ampla, será a Campanha do Petróleo.
Nos anos 1930 havia interesse oficial em se dizer que no Brasil não havia petróleo. Monteiro Lobato aliava a literatura e a prédica a atitudes concretas. Na contramão dos interesses dominantes, fundou a Companhia Petróleos do Brasil, e graças à grande facilidade com que foram subscritas suas ações, inaugurou várias empresas para fazer perfuração, sendo a maior de todas elas a Companhia Mato-grossense de Petróleo (em 1938), que visava realizar perfurações quase junto à fronteira com a Bolívia, cujo governo nacionalista já encontrara seu ouro negro.
Em dois livros, “Ferro” (1931) e “O Escândalo do Petróleo” (1936), o escritor documenta os lances dramáticos da duríssima batalha que teve que travar contra a “carneirada” e contra os “moinhos de vento”, movido unicamente pelo afã de prover o Brasil de uma indústria petrolífera independente. O último livro esgotou várias edições em menos de um mês. Aturdido, o governo de Getúlio Vargas, o qual era acusado de “não perfurar e não deixar que se perfure” proibiu “O Escândalo do Petróleo” e mandou recolher todos os exemplares disponíveis, naquilo que seria o primeiro lance da longa sequência de escândalos envolvendo o ouro negro brasileiro, que prosseguem até os dias de hoje.
A empolgação de Lobato fez com que ele percorresse todo o país em busca de apoios; a guerra que lhe moveram os governantes, os burocratas e sabotadores dos interesses pátrios, terminou por deixá-lo pobre, doente e desgostoso e, até mesmo, levá-lo ao Presídio Tiradentes, onde como preso político foi confinado por seis meses, naquela mesma cela do Pavilhão n.1, pela qual passariam tantos presos da ditadura militar de 1964.
O certo é que com admirável sentido de luta, Monteiro Lobato conseguiu sacudir o Brasil de alto a baixo, apontando ao povo brasileiro os caminhos de sua emancipação econômica, lutas que se aprofundariam após a sua morte e que redundaram na fundação da hoje A Petróleo Brasil S/A (Petrobras), empresa criada em 1953, na fase populista do então presidente Getúlio Vargas, impulsionada pela campanha popular iniciada em 1946, sob o slogan de “O petróleo é nosso”.
Mas voltemos a Monteiro Lobato escritor da maior parte das histórias infantis nacionais. Além de Narizinho Arrebitado, uma edição inicial de 50 mil exemplares no ano de 1921, outras tão importantes ou mais foram: “Reinações de Narizinho” (1931), “Caçadas de Pedrinho” (1933) e “O Pica-pau Amarelo” (1939). Os “Trabalhos de Hércules” concluem uma saga de trinta e nove histórias e quase um milhão de exemplares em circulação.
Nesses trabalhos Lobato criou personagens inesquecíveis, que se incorporaram para sempre ao folclore brasileiro. Emília, a boneca de pano com sentimento e ideias independentes; Pedrinho, personagem com que o autor se identifica quando criança; Visconde de Sabugosa, a espiga de milho com consciência e atitudes de adulto; Cuca, a vilã. O folclore do Saci Pererê encontrou sua maior divulgação literária no autor de “Reinações de Narizinho”.
Lobato foi traduzido para diversas línguas como francês, italiano, inglês, alemão, espanhol, japonês, árabe e iídiche.
Em 1926, Lobato concorreu a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas acabou derrotado. Era a segunda vez que isso acontecia. Na primeira vez, em 1921, iria concorrer à vaga de Pedro Lessa, mas desistiu antes da eleição, por não querer fazer as visitas de praxe aos acadêmicos para pedir seus votos. Desta vez, estava concorrendo à vaga do renomado jurista João Luís Alves. Na primeira, recebera um voto no terceiro escrutínio, e, na segunda, dois votos no quarto.
Digno de nota é que Lobato ainda sofreu crítica, censura e perseguição por parte da Igreja Católica. O influente padre Sales Brasil, na primeira fila do reacionarismo da guerra fria, denunciará o livro “História do Mundo Para as Crianças” como sendo o “comunismo para crianças”.
Lobato também provocou outros tipos de polêmicas. Quando publicou “Paranoia ou Mistificação”, a famosa crítica desfavorável à exposição de pintura de Anita Malfatti (na Semana de Arte Moderna de 1922), muitos modernistas passaram a tachá-lo de reacionário, com a notável exceção de Mário de Andrade. Na realidade, a crítica de Lobato era direcionada aos “ismos europeus”: cubismo, futurismo, dadaísmo, surrealismo, que ele denominava de “colonialismos”, “europeizações”, da mesma raiz do “academicismo da geração anterior”. Lobato era a favor de uma arte autenticamente brasileira, autóctone.
É bem verdade que a obra literária de Lobato da década de 1920 continha preconceitos raciais e eugênicos. Ele acreditava que a miscigenação fora um fator prejudicial na formação do povo brasileiro. Seu livro, “O Presidente Negro” (1926), descreve um conflito racial de um tempo futuro, após a eleição de um negro para a presidência dos EUA.
Posteriormente, com sua aproximação ao comunismo, essa faceta “eugênica” se desfaria. Monteiro Lobato sempre se declarou, corajosamente, simpatizante da Revolução Soviética; diz o seu biógrafo que “ele ansiava por um socialismo difuso, meio anárquico, meio romântico”. “Não possuía, entretanto, nenhum gosto pela especulação doutrinária e por isso, jamais foi homem de partido, militante político.” Seu contato maior com os comunistas ocorreria a partir de 1941, após o período de confinamento no Presídio Tiradentes, durante a ditadura de Vargas.
Empolgou-se com a luta antinazista da União Soviética na Segunda Guerra Mundial e suas conquistas e vitórias nos campos das ciências, da educação. Jamais escondeu sua admiração e estima por Luís Carlos Prestes e o fazia de modo aberto, a quem lhe perguntasse. Em 1945, no famoso comício do Pacaembu enviou a Prestes uma das mais lindas e humanas saudações. Quando, em 1947, levanta-se uma nova onda de calúnias direitistas e perseguições políticas, de sua pena nascerá a história de “Zé Brasil”, panfleto que percorreu o país de norte a sul, acusando o presidente Dutra de implantar no Brasil uma nova ditadura: o “Estado Novíssimo”.
Sua visão sobre a problemática social ele a resumiria, já sexagenário, da seguinte maneira: “A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi da miséria silenciosa nos campos e nas cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança.”
Monteiro Lobato foi um dos homens mais íntegros e corajosos que já viveram neste país, um intelectual “à moda antiga”, daqueles que passados quase um século a nossa pobreza ética e intelectual ainda se ressente.
Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.